Poderia ter havido negociação. A afirmação do ex-primeiro-ministro chinês Zhao Ziyang bota lenha na fogueira e reacende a ira dos meandros do poder comunista em Beijing, que gasta boa parte do tempo e dos esforços para se livrar do fantasma da Praça da Paz Celestial. Zhao se refere aos estudantes que acamparam em frente à Cidade Proibida e só saíram dali expulsos pelo Exército de Libertação Popular, alguns deles, mortos – entre centenas e até 2 mil mortos, ainda não se sabe a cifra exata -, em 4 de junho de 1989.
As declarações estão no livro póstumo Prisioneiro do Estado – O Diário Secreto do Premie Zhao Ziyang, lançado nesta terça-feira nos Estados Unidos e em Hong Kong, onde a obra de 306 páginas ganhou versão em chinês. Na parte continental do país ela está proibida.
Os editores aproveitaram os 20 anos do massacre para publicar o livro, até agora o relato mais crítico à cúpula política no comando da República Popular da China vindo de um integrante do primeiro escalão.
Zhao ascendeu ao Politburo em 1977, pinçado pelo então presidente Deng Xiaoping, sucessor de Mao, depois de garantir reformas profundas que fariam a indústria de Sichuan crescer 81% em três anos, mesmo período em que a agricultura deu um salto de 25% na província. Em 79, já era vice-primeiro-ministro e seis meses depois, nomeado premiê. Zhao era ambicioso e tinha como meta transformar a China numa social-democracia até 2000. Começou, conta no livro, implantando a política de reforma e abertura, que transformou o país no chão de fábrica mundial. Os louros, claro, até hoje são do então presidente, Deng.
No final da década de 1980, o que eram flores se revelou um problemão. O superaquecimento da economia trouxe inflação e descontentamento. O culpado? Zhao, óbvio. Para completar, quando os estudantes tomaram a praça, lá foi ele conversar com o povo – e nesta foto, vocês podem ver que ao lado esquerdo de Zhao, com megafone em punho, está uma figura que viria a se tornar tão importante quanto, o atual primeiro-ministro Wen Jiabao.
No debate com os estudantes, o primeiro-ministro selava seu fim político e viveria os próximos 16 anos sob prisão domiciliar, em Beijing, tirado de cena. Claro que o partido sabia do simbolismo da figura de Zhao e quando este morreu, em janeiro de 2005, um comitê foi criado às pressas para monitorar possíveis manifestações populares. Os ideais democráticos de 1989 não se revelaram, no entanto. A prudência do Politburo ainda fez com que houvesse um controle dos viajantes à capital na época, evitando um afluxo de gente do interior, além de proibir que a notícia da morte fosse veiculada em rádio e TV.
Gato escaldado tem medo de água. É que todo o movimento em 1989 surgiu a partir do luto pela morte de Hu Yaobang, outro integrante do Politburo que defendia reformas que poderiam desembocar em uma política mais democrática. Hu morreu em 15 de abril de 1989, depois de sofrer um ataque cardíaco durante reunião do partido. No dia 17, um grupo de estudantes foi à Praça homenageá-lo com flores e faixas. E àquela manifestação de pesar foram juntando-se mais flores, mais estudantes e, principalmente, mais faixas.
Nos dizeres, nem sempre Hu era o tema. A democracia era, pedidos de liberdade de expressão eram, o fim do sistema de unidades de trabalho, em que os empregos passavam de pai para filho, como um tesouro praticamente genético que dava ao governo o poder de gerenciar não só a vida profissional dos não cidadãos, como a privada, também era. E de tantas faixas, flores e estudantes surgiu uma tese, publicada no Diário do Povo de 26 de abril, a voz do partido chinês. Articulado por Li Peng, camarada linha dura e próximo a Deng, o editorial taxava a manifestação de anti-partido e anti-socialista. Decretado, pois, quem eram mocinhos e bandidos na história.
O objetivo, dizem especialistas, seriam amedrontar os manifestantes que, acovardados pelo status de inimigos, recolheriam-se à sua insignificância. Engano. A mobilização só fez crescer. E Zhao insistindo em negociação. Até que numa reunião na casa de Deng, relatada no livro, se decide decretar lei marcial e acabar com a balbúrdia. Este é um dos pontos em que Zhao inova, ao desdizer registros não oficiais, diga-se, sobre a decisão que culminou na expulsão via exército. Zhao sustenta que não houve votação entre os integrantes do Politburo sobre a questão, fato que contraria até mesmo as regras partidárias. Para mim, não faz diferença alguma se alguém antidemocrático não votou. Mas parece que aí estaria mais uma prova da arbitrariedade dos grandões chineses.
Zhao fala mesmo e fala demais. Tenta mostrar que Deng não tem nada de arquiteto das reformas, atribuindo a si muito das mudanças. Tudo isso foi gravado em cerca de 30 fitas, secretamente, claro, que saíam de casa clandestinamente. Bao Pu, responsável por traduzi-las para o inglês e um dos editores do livro, conta que levou anos para resgatar todo o material. Pu é filho de Bao Tang, assistente político de Zhao e que passou seis anos na cadeia após o episódio da Praça.Imagino, mesmo sem ter lido, que os esforços tanto de Zhao para gravar às escondidas quanto de Bao para reunir e traduzir o conteúdo valem super a pena. Botei o livro na lista de obras que lerei. E quem gosta de história política contemporânea ou tem curiosidade sobre a China deveria fazer o mesmo.
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