A China que eu conheço, esta que acontece agorinha mesmo, em 2009, tem duas características marcantes, entre tantas outras tão marcantes quanto.
A primeira é uma total guinada na vida da população, que experimenta uma liberdade um tanto impensada há pouco mais de 30 anos e enfrenta novos paradigmas, que fazem do outrora condenado modelo capitalista o sistema em que todos embarcaram. A segunda é resquício dos tempos duros de controle estatal, em que vida pública, profissional e privada se resumiam numa só. Hoje você bem pode mudar de cidade, ter dois ou três filhos, escolher que profissão seguir. Basta que tenha dinheiro. Ou quase isso. Sério, antes não podia.
Hoje ao chegar ao trabalho, me deparei com uma galeria de fotos celebrando as novas leis para o casamento, promulgadas no início da década de 1950, logo nos primeiros anos de Mao. Aliás, é dela que roubei a foto que ilustra este post. Para quem quiser ver todas, o que fortemente recomendo, siga este link http://www.chinadaily.com.cn/china/2009-09/24/content_8727518.htm .
Voltemos ao casamento. O que se celebra na Nova China é uma ruptura com os moldes casamenteiros do passado, tachados como feudais oficialmente, quando, a partir da estrutura civil da República Popular homens e mulheres passaram a ser iguais - ainda que na prática, nunca tão iguais assim. Até hoje, o Comitê Central do Politburo, as nove cabeças realmente importantes na esfera política chinesa, nunca teve participação feminina. Mas, bueno, no Politburo eles não são tão iguais assim. Falemos do povo - essa entidade que sempre se ferra e é feliz, já ensinava uma música qualquer.
Casar na China após 1950 deixou de ser arranjo entre famílias, e as mulheres puderam defintivamente abandonar o costume cruel de terem os pés atados para criar os famosos pés de lótus, um fetiche masculino que consistia na deformação dos tais pés, num esforço iniciado ainda na infância, quando as mães enfaixavam os pés das meninas para que estes não crescessem para além de 13cm, 14cm - mas o ideal mesmo eram aqueles que mediam 10cm. Com a deformação, as mulheres tinham um caminhar cambaleante, e o homem sabia que não perderia sua presa, praticamente impossiblitada de fugir de casa. A tradição já havia sido banida na criação da República, em 1911, mas foi com a ascensão de Mao ao poder que passou a ser crime. E viva a igualdade.
O que fica omitido na galeria de fotos que celebra a liberdade matrimonial foi o peso gigante da estrutura estatal nas decisões caseiras. Nos primeiros dois anos em serviços estatais, por exemplo, era proibido namorar. Os casais, muitas vezes, eram apresentados pelo representante local do Partido, num jogo em que a sugestão deveria ser aceita, sob pena de retaliações para a família do jovem que se recusasse. Afinal, só quem tão bem conhecesse sua comunidade para sugerir as uniões. Uma cena contudente está no filme de Zhang Yimou Viver (To Live, em inglês, 1994), proibido na China e que conta a história recente do país - notadamente a maoísta - sob a perspectiva de uma família. Pois a filha do casal protagonista é muda. E lá vem o chefete local arranjar o casamento da moçoila com um par manco, uma vez que dois portadores de deficiências não poderiam esperar casar com alguém "normal". Sutilezas do jeito chinês de arranjar as vidas, como eu disse, numa mistura geral de o que é de foro privado ou público. Na vida real, divórcio, só com permissão da unidade de trabalho - e ninguém tá preocupado em saber porque o casal queria divorciar.
As fotos mostradas no China Daily, jornal estatal, aliás, revelam aspectos típicos da sociedade, como o passeio de bicicleta após o casamento - cena, aliás, muito bem ilustrada em Viver. Não pense que o costume hoje tenha se perdido, apenas o meio de transporte mudou. Ao ver uma fila de carrões pretos decorados com flores, saiba que se trata de um desfile para recém casados. Juro que da primeira vez pensei se tratar de um cortejo fúnebre, impressão desfeita ao encontrar um colega chinês, que logo tratou de explicar que a procissão pomposa e em ritmo lento pelas ruas de Beijing se tratava de comemoração.
Muita coisa mudou, não apenas o abandono das bicicletas. Mas nos 60 anos, outro flagra mostra ainda Mao abençoando o casal, cena típica dos tempos de Revolução Cultural, quando as fotos que lembravam o casório eram tiradas em frente a retratos do Timoneiro e nas quais os pombinhos seguravam o famoso Livro Vermelho. Sinal de que a mística ainda é forte. Longa vida!
Se o Partido tenta dar esta cara de fim de casamentos arranjados na Nova China, esquece de dizer que segundo as palavras de Mao, os casais deveriam guardar energia para o trabalho, em vez de fazerem sexo. A vida privada envolvendo o prazer era um tabu tão grande que ainda hoje há quem esteja focado no trabalho e deixando de literalmente gozar a vida para não desperdiçar gás. Sinal de que a máquina propagandística é eficaz, alguns ecos ainda reverberam nas novas gerações. Gerações estas que podem ver no jornal a felicidade da união entre uma moça han com um tibetano, de casais celebrando a união em românticas carroças por ruas em Xinjiang. Tou falando da galeria do jornal estatal. Se você ainda não viu, clique. Mais uma chance:
http://www.chinadaily.com.cn/china/2009-09/24/content_8727518.htm .
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