quarta-feira, 30 de setembro de 2009

O quão longe a bici te leva

Faltam 10 horas para a China celebrar via televisão para todo o país os 60 anos da República de Mao, numa história de sucesso econômico e sonhos de prosperidade coletiva. O resto é falácia, quem está aqui não quer saber, não foi ensinado a querer saber e tem raiva de quem sabe – numa frase adaptada de um velho ditado de um velho sábio chinês.

 

A festa da República Popular promete terminar em carnaval, donde concluo que um detalhe me preocupa: o povão não foi convidado. Mas sabe que eu acho que ele nem se importa? Ele o povo, eu digo. Chinês, para deixar claro.

 

Desde os tempos em que as massas foram chamadas para juntos construírem uma nação, elas aprenderam que por estas terras a união nacional tem um preço, o do credo cego na liderança – que por ser líder e doar a vida ao bem nacional não faz mais do que a obrigação em aceitar alguns privilégios. Amanhã os vips representarão o povo nas tribunas instaladas em frente à Praça da Paz Celestial, exatamente no mesmo lugar onde o Timoneiro declarou a fundação da Nova China, daquela vez, outubro de 1949.

 

Hoje ao sair do trabalho, peguei a bici para ir até a praça, o palco da festa – que estará interditado à maioria dos normais durante a quinta-feira. O passeio me mostrou muito mais do que uma praça cujas cercas metálicas que a separam da via pública foram retiradas. Muito mais do que o espaço que agora abriga telões gigantes, 56 colunas em vermelho e dourando lembrando as 56 etnias chinesas ou gigantescas lanternas vermelhas. Bem mais do que os telões ao lado de Sun Yat-sen, o cara considerado o pai da raiz democrática chinesa circundado por imagens marcantes – e lindas – de momentos históricos oficiais do país.

 

Mostrou que o povo se apropria da festa como pode. Sem ser convidado para a pompa oficial, hoje fez vigília por ali. Quem estava por perto, aproveitou a noite de luar para uns dedinhos de prosa com os amigos. Tinha família de bandeirinha da China na mão. E o que tinha de pedestre e ciclista de celular em punho, camera de foto e até de video registrando a véspera do desfile não era brincadeira. Eu tinha também, mas sem bateria, lamentável. Enquanto meus camaradas mal disfarçavam um sorriso orgulhoso, ouviam pelos megafones da segurança pedidos para que não parassem por ali, seguissem adiante.

 

A ideia é manter sigilo sobre a festa, que tem toques da grife Zhang Yimou e presença confirmada do jeito chinês de fazer propaganda, numa mistura de estilos que beira o kitsch. Ou ultrapassa e bem este limite, já diria outro sábio chinês.

 

Tudo era motivo para clique. Até os guardinhas que desembarcavam aos pelotões de caminhões do exército, cada um segurando seu próprio banquinho de madeira, provavelmente o bem mais valioso desta madrugada, onde vão se apoiar para uma descansada. Ou a turma da limpeza, gente que vai participar no apoio da festa toda, e que, às 21h30min de quarta-feira, já mostrava as credenciais e passava pela inspeção de segurança. Gente pobre que para participar tem de dar o sangue. Uma pena mesmo não ser VIP. Mas quem se importa.

 

O meu passeio de bicicleta serviu para pensar no orgulho destes chineses todos, os das bandeirinhas, os das máquinas em punho, os dos banquinhos de madeira e daqueles que já devem estar entre insones e automatos para deixar tudo brilhando. Eles estão vibrando com a data, que não é ruim em si. Eles comemoram os resultados de 60 anos de governo de união de um país cuja história recente é permeada de grandes períodos de fome, escassez, incertezas. Eles se orgulham de voltar à posição geográfica que atribuem a estes pagos desde os tempos imperiais, o de Império do Meio, ainda que seja figurativamente, dada à importância politico-econômica da nação hoje. Muitos têm banheiro dentro de casa, comem melhor, se vestem melhor e têm promessas de sistemas universais de acesso à saúde e à previdência. Não, ninguém remotamente nem sonhava com tais conquistas há 60 anos – e bem verdade que se alguém sonhasse há 30, correria sério risco de sumir do mapa.

 

Meu passeio de bici me fez viajar. Em tentar descobrir as motivações dos donos da casa, a identidade nacional chinesa, o jogo de poder do Partido Comunista. Confesso que viajei longe e não cheguei a lugar algum. Devo passar a quinta-feira grudada na TV, o jeito pop de não perder a festa. Vou ser mais uma a digerir a informação filtrada, a ouvir a ladainha ultrapassada de ode a uma ideologia que não existe em si, a do socialismo com características chinesas, este cujo molde se fixa à harmonia e ao desenvolvimento científico, num desfile de conceitos tão fantasiosos quanto a parada desta quinta, que vai celebrar uma paz que não existe.

 

E quando eu de novo me emocionar com algum olhar sincero de um chinesinho orgulhoso e sorridente qualquer, vou voltar à velha questão que justapõe felicidade e ignorância, o oposto do que acredito, mas formula fácil de satisfação de massas. E viva a República Popular.

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