Para chegar à cidade, que já foi capital de um antigo reino na Ásia Central, uma das ideias é pegar um dos voos que partem diariamente de Urumqi, a capital de Xinjiang. O percurso de 1,2 mil quilômetros – mais ou menos o que separa Porto Alegre de São Paulo – é percorrido em uma hora e 40 minutos. Tempo para ver uma cordilheira sem fim de picos nevados e outras tantas montanhas que pintam a paisagem de verde, vermelho ou ocre, num colorido sem vegetação, mas de tirar o fôlego. Acrescente o céu azul de dias límpidos e abra a boca. Você vai dizer "bah!". Se não disser, azar o seu de não ter nascido ou ter sido criado no Sul, terra de onde herdamos uma simples partícula que denota espanto, surpresa, estupefação e até desacordo, numa gama de significados mil e uma utilidades. Tão simples e complexa quando os uigures, sacou? Afinal, saque um bom bah e seja tachado de gaúcho bairrista por qualquer brasileiro em qualquer ponto do mundo. Mais ou menos o que acontece com os uigures.
Eles são tachados de separatistas e passam os dias a ouvir e ler mantras de sociedade harmoniosa propagados pelo governo central em jornais, cartazes, nos caminhões do Exército que circulam incessantes pela cidade, especialmente depois dos protestos de 5 de julho. Um típico caso de entrar por um ouvido e sair pelo outro. Ainda bem que temos dois.
Não que eles sejam separatistas, muito menos que não haja gente que não seja – deve ter aos montes, especialmente aqueles que não conseguem se livrar tão fácil dos pedidos incessantes e hipócritas de harmonia e igualdade social (e com a coisa martelando na cabeça, é mais fácil perceber o quanto a injustiça e a hipocrisia podem ser danosas). A sociedade harmoniosa, aliás, é moldada numa outra cultura, e isso para mim já diz tudo. O sentimento maior é de não pertencimento. Depois, o que se faz com isso pode ser resignação ou insurreição. Não tem outro jeito.
A leitura sobre esta Região Autônoma da China nos leva a discutir o grau de preconceito em relação aos moradores donos da terra, que em geral têm menos direitos em carreiras públicas e privadas e se lascam na competição desigual com os han, os chineses maioria no pais e que detêm, diz-se, realmente o poder. Mas eu pararia ainda no estágio da identidade cultural, que diz respeito ao seu hábito alimentar, a como você escreve, de que jeito se expressa e se relaciona com o mundo. Viaje a Kashgar e veja que não está na China.
Kashgar está longe e perto de um monte de coisa. Por imposição, é chinês. Por conta dos vizinhos talibãs do Afeganistão, virou cenário de filme. Foi ali que foram rodadas cenas de O Caçador de Pipas, O Garoto de Cabul, na tradução em Portugal (aliás, uma das únicas traduções na qual vi se perder a poesia, visto que até em chinês o que está em questão são os papagaios, 追风筝的人, Zhui Fengzheng de Ren). Devido ao perigo de rodar na capital afegã, Kashgar foi locação. Revi o filme só para ver se reconhecia alguma coisa. Não tendo ido a Cabul, não posso dizer que a cidade que aparece no filme seja um retrato fiel daquela que tentam representar. Mas me parece que essa era a ideia. Se deu certo, voilà, Kashgar está mais para Afeganistão que para China. Dos picos nevados e coloridos dos quais falei lá em cima às casas apoiadas em palafitas e revestidas de barro ocre, tudo é Xinjiang. E, sim, as carinhas das pessoas são as mesmas, tire apenas o turbante de alguns homens, isso eu não vi.
O filme tem logo no início uma imagem de um mercado de animais vivos. Adivinhe qual o primeiro programa do domingo pela manhã em Kashgar? Tente mais um pouco, depois eu conto.
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