segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Figuras chinesas

Morar na China é viver eufemismos.

Bem, chegar aqui significa conhecer e incorporar uma gama incrível de novas habilidades, da gastronomia ao andar de bicicleta em meio a este trânsito maluco. Fora as questões práticas do dia a dia, talvez seja importante prestar atenção no quanto os eufemismos permeiam a sociedade. Eles podem ser a chave para uma vida tranquila por aqui. Pensando bem, eu classificaria o tema como outra das questões práticas do dia a dia.

Incorporar os eufemismos e conviver com eles pode ter dois impactos fortes: você pode se tornar cínico ou adotar uma postura um tanto quanto hipócrita em relação a tudo que o cerca. Entendê-los como fundamentos de uma sociedade que não é a minha me parece o melhor caminho. Sem meias palavras e sigo em frente, me resignando quando não tenho outra escolha.

No último sábado, fui com a Cláudia Trevisan ao distrito de arte 798, um antigo chão de fábrica da época de Mao que hoje abriga de galerias a restaurantes - e recebe democraticamente artistas de rua com violãozinho e voz chata e estridente na calçada, além de ambulantes.

O local, no qual a arte contemporânea começou a aparecer entre 2002 e 2003, já recebeu mais turistas do que a Cidade Proibida em 2007. Lá nos deparamos com a exposição Solution Scheme, ou um esquema para a solução, série de fotos em que a prostituta Yu Na é dirigida pelo fotógrafo Xu Yong, que ganhou fama na China ainda na década de 1990 ao fotografar hutongs, o emaranhado de casas e ruelas que abrigavam os altos funcionários de governo nas dinastias Qing e Ming em Beijing e que hoje servem de moradia para gente de classe mais baixa, especialmente.

Mas voltemos à Solution Scheme e aos eufemismos. As fotos trazem Yu Na nua, no comando das cenas, em que vários homens atuam como coadjuvantes. É ela quem tem o disparador na mão (claramente presente nas imagens) e escolhe o momento exato do clique. Na descrição em inglês, entendemos que se trata de uma prostituta dirigida por um artista. Na versão em chinês, ela é apresentada como uma acompanhante (getingzuotaixiaojie, ou 歌厅坐台小姐) - garota que trabalha em bares, boates e casas de karaoke, mas que, necessariamente, nao precisam fazer sexo com o cliente. Eufemismo, ainda que descarado. Ou imagens valem mais do que mil traduções?



Conversei com dois amigos chineses e fiz a mesma pergunta: Qual o significado de 歌厅坐台小姐? Um prontamente me disse que se tratavam de garotas pagas para fazerem sexo. O outro me "vendeu" a tese de se tratar apenas de acompanhantes. Seja qual for o caso, ainda na versão em inglês da apresentação da exposição, os artistas deixam claro que a prostituição é tema tabu na sociedade chinesa. Alguém duvida?

***

Eu precisava de uns dias de folga, e teria de tirá-los adiantado, pois ainda não os tenho. Tentei todas as negociações possíveis, mas não houve jeito. Resignei-me. Hoje me ligaram do Departamento Pessoal para avisar sobre meu cartão de saúde, que está pronto desde JUNHO. Estamos em FEVEREIRO.

Moral da história: a ligação ocorreu hoje apenas para que eles se certificassem de que eu não viajei escondida, tendo eventualmente negociado com instâncias inferiores. Dizer que meu cartão estava pronto foi um eufemismo. Poderia ter sido simplesmente: "Que bom que você está aí, não viajou".

Um comentário:

Anônimo disse...

A prostituição pode ser tabu na sociedade chinesa do continente, mas não na sociedade chinesa de Macau... Macau é um bordel gigante, cujos clientes são essencialmente os chineses da "mainland". Se é também tabu aqui, então os chineses são uns grandes hipócritas.