terça-feira, 23 de março de 2010

Um país, dois sistemas: Um Google

O Google resolveu botar fim à contenda com o governo chinês, aberta em janeiro deste ano, quando a gigante norte-americana unilateralmente resolveu banir a auto-censura, desviando os serviços do Google na China continental para os servidores de Hong Kong. Agora, quando você digita www.google.cn, aparece no seu browser www.google.com.hk.

O anúncio, previsto para a segunda, 22 de março, tirou o sono dos chineses. Em terras orientais, ainda se respirava o que poderia ser o sereno da madrugada não fossem os rescaldos da tempestade de areia vinda da Mongólia Interior, que acabou por deixar a capital chinesa amarela na segunda - e que, como um prenúncio do comunicado googleano, também se abateu sobre a ilha, ainda que, em geral, seja apenas assunto interno do continente. 

Voltemos ao Google. A empresa norte-americana fez o anúncio já na terça, 3h, no horário de Beijing, despertando os oficiais à frente da questão. Quem acordou em hora de gente e foi para a internet ler as notícias chinesas em inglês, logo viu na capa do China Daily o que seria a reação oficial. 

"A Google violou sua promessa escrita feita ao entrar no mercado chinês ao retirar os filtros no serviço de busca e acusando a China em insinuações sobre supostos ataques de hackers", diz o comunicado. Bonitinho esta coisa de violar a promessa escrita, né.

Para os executivos da Google, a manobra, além de parecer legal, é razoável. A ver. Óbvio que já há boatos de que, em retaliação, o governo pode bloquear acesso tanto ao serviço de Hong Kong quanto ao serviço norte-americano, como já fez com Youtube, twitter, Facebook. Um serviço estrangeiro a mais ou a menos não faria a menor diferença. Ou faria?

Bueno, faria, sim. Ao expor em janeiro os motivos da possível saída, a Google acendeu discussões mundo afora, afinal não é todo o dia que uma empresa, ainda que bem das pernas, ao que parece, desiste de um mercado potencial de quase 400 milhões de usuários, segundo números atuais (e que só crescem). Em termos gerais, caso você não lembre da história, a Google disse que sairia porque cansara de censurar termos proibidos - a lista aquela que qualquer ocidental ligado em China já deve saber de cor, coloque aí Massacre da Praça Tiananmen e Dalai Lama. Tipo assim, a empresa teria ficado pê quando descobriu supostos ataques a contas de e-mail nos Estados Unidos de dissidentes ou pessoas ligadas a movimentos de direitos humanos na China. A empresa deu até o endereço de onde supostamente teriam partido os ataques, uma universidade em Shanghai e uma escola técnica secundária da província de Shangdong. Tudo oficialmente negado pelas autoridades chinesas, claro.

Para além do que seria um escândalo de ciberataques e espionagem, o caso Google x China é considerado histórico por desnudar a questão da censura dentro e fora do país. Criado o caso, ainda revela outra face, uma certa preferência do governo chinês por empresas nacionais, dificultando a entrada de negócios estrangeiros. Sim, é óbvio que isso também é veemente negado por Beijing, não se preocupe. Caso haja preferências, elas não são explícitas. Ou não eram. 

Um fato é certo. Ao debandar para Hong Kong, a Google nos lembra de o quão esquizofrênica é a relação da China com a parte não continental do país. Explicando. Hong Kong deu vida à expressão Um País Dois Sistemas, o mecanismo que permite regalias aos moradores da ilha ao passo que está sob o governo central de Beijing. 
Também permite ali o capitalismo do mal sem qualquer disfarce e serve de entreposto de importações e exportações, que encontram naquelas paragens praticamente paraísos de isenção fiscal ou taxas preferenciais antes de aportarem nos destinos finais - perfeito para chineses e estrangeiros que fazem negócios . Isso tudo porque, caso você não lembre, Hong Kong era uma concessão inglesa. Só retornou ao domínio chinês em 1997, processo que levará a uma total unificação somente em 50 anos. Talvez o Google venha dar dicas de qual dos dois sistemas prevalecerá em 2047, mas não custa nada sonhar que seja o mais democrático hongkongnense, né.