Hoje, 12 de junho, para deixar claro aos que estão em solo brasileiro e em 11 horas de algum lugar do passado sob a minha perspectiva chinesa, eu comemoro dois anos de febre amarela, a metáfora fácil para os que se encantam pela China.
Enamoramentos orientais. Eu já tinha no meu DNA, se é que se adquire DNA aos cinco anos, que é quando eu vim para o Japão, daquela vez trazida por papai e mamãe. Os seis meses da infância cercada de olhos puxados que liam letras estranhas e de cujas bocas saíam sons ininteligíveis deixaram marcas. Já me achando dona do meu nariz, tentei aprender japonês e mais, caí de amores pelos japoneses. Do grupo de amigos para entender que os nossos japoneses eram melhores que os dos outros foi fácil, então eu tive paixões japonesas e lá estava eu em 2000 supernamoradona do Yu, passando férias no Japão. Nada mais natural. Depois acabou. O namoro, eu digo. Não a paixão pelo Japão, pelos olhinhos puxados, muito menos meu megacarinho pelo Yu, esse é do tipo pra sempre. Mas deixa esse papo pra lá. Era só pra dizer que talvez explique muita coisa.
Numa perspectiva chinesa, tenho o meu passado à minha frente. Para eles, os chineses, deixe-se claro, numa inversão de valores ocidentais, o passado que tu conheces e sentes está sempre no teu caminho. O futuro, este ilustre desconhecido, é referido como algo que ficou para trás, obscuro – e quem sabe pode até te apunhalar pelas costas, te trazendo surpresas desagradáveis. Acho a lógica cruel, mas me rendo a ela. Alguma coisa eu deveria tentar entender neste país, porque o resto quase todo não dá.
Deve ser este sem fim de lógicas ilógicas, crenças e comportamentos peculiares que vão atiçando a curiosidade de quem se arrisca por estas terras acolhedoras. Seda pura. Desavisados como eu vêm para cá para passar um tempo, tipo intermináveis 12 meses, na minha ilusão de marinheira chinesa de primeira viagem. Aí ficam dois anos, se preparam para ficar três, depois eu nem sei. Quem sabe sobre o futuro? Nem os chineses sabem.
Mas como hoje é dia de comemorar e contemplar o que aprendi em dois anos e tentar entender por que não consigo ir embora, vou tentar ir além do meu DNA asiático. Aliás, o que eu já teria incorporado e o que teria acontecido em dois anos?
1 – Existem os chineses. E depois o resto. Sob a ótica deles e sob a nossa. Eles se orgulham de ser quem são e são chineses nascidos no Brasil, chineses nascidos na América, chineses sei lá onde. Sempre chineses. E nós, os ocidentais, reforçamos isso com todos os requintes. A gente vive aqui, mas ou vai a bar de estrangeiro, ou sai em boteco chinês. Tem diferença, tá no nome, no nosso cotidiano. Ou alguém em Porto Alegre se refere a bar de estrangeiro e a bar brasileiro? E daí tem os caras que a gente pode pegar e aqueles que só gostam de chinesas. E tem os chineses que têm medo das ocidentais. Então, entre as solteiras sempre rola a pergunta “você já pegou algum chinês?”, como se eles fossem quase impegáveis. Até são. Mas sempre tem uns aí pra ajudar as ocidentais a descobrir o que o chinês tem. Eu descobri o fofinho Paul, que acho, agora, um baita samaritano, preocupado com as descobertas antropológicas das estrangeiras incautas pela noite de Beijing. Não bastasse ele ter tido um casinho com uma amiga italiana, há dois dias descobri que ele tava pegando uma brasileira que recém conheci. Meu faro pra galinha não falha nunca, até quando se come de pauzinho.
2 – Comida chinesa aos montes é incomível. Passo semanas sem sentir vontade de.
3 – Chineses têm uma carência de senso estético inacreditável. Um país de ávidos consumidores recentes, que querem tudo ao mesmo tempo agora. Do carro à casa, tudo tem pendurico, dourado, vermelho e detalhes em pelúcia. A roupa combina luxo e glamour fake com brilhos e estampas. Ao mesmo tempo, eu já disse. Ai, irrita.
4 – A grande massa é de analfabeto funcional, desculpa. Há uma retidão de pensamento atroz que deve derivar do sistema educacional que prioriza a memorização em detrimento da criatividade. Um desperdício para quem tem de aprender uns 3 mil caracteres para começar a ler jornal. Tem vezes que eu acho que o sistema ainda é mantido justamente para isso, para exercitar desde a tenra idade a memória e não o fluxo de ideias.
5 – Eu tou ficando cega. Faz meses que percebo que não tou enxergando bem.
6 – Existe um culto à hierarquia e fé cega nos detentores de poder. A moda agora é estar consciente de que o governo impõe limites, sim, em questões como a liberdade de expressão, por exemplo, mas é bom. Liberdade e demonstrações desta tal liberdade conduzem ao caos. O caos conduz a divisões, separações. E se perderia a unidade chinesa, que pode ser qualquer coisa, mas é, acima de tudo, um conceito abstrato e fantasioso. Tem muita minoria neste caldo, muitas das quais nem tão minorias assim.
7 – A vida cotidiana, aquela longe das elucubrações tão caras aos ocidentais que passam o tempo aqui tentando, ingenuamente, entender os chineses, é deliciosa. Há uma amabilidade e um esforço da maioria das pessoas em se fazer entender, em tentar nos entender. No dia em que descobri que secador de cabelo chama-se “Máquina de soprar vento”, ganhei uma lição das minorias. Eu disse que não falava mandarim e o menino que me massageava – um mimo que só na China poderia haver, pré corte de cabelo no salão de beleza - disse que também não, antes de mudar pra Beijing. Como assim? O mocinho era de uma minoria que não consegui entender. Pedi desculpa pelo meu pobre mandarim e disse que não tinha tempo de estudar.
- Você tem ou não tem vontade. Não é questão de tempo – me disse o mocinho.
8 – Lukuang Xinxi é um programa de táxi que fala sobre o movimento das ruas. Em algum momento no táxi você vai ouvir a vinheta. Lukuang Xinxi!
9 – Qualquer birosca de Beijing tem por perto uma sex shop. Aqui, se chama loja para saúde dos adultos.
10 – A melhor cerveja chinesa é a Harbin. A mais famosa e fácil de encontrar é a Tsingtao. A primeira é russa, a segunda alemã. Alguém tá afins de conhecer Moscou? Me convida.
11 – Dá pra ir pra muitos lugares paradisíacos perto da China. Eu mesma tou indo pra Bali ver minha irmã semana que vem. Se a gripe permitir. Eu que aqui não pego nada, nem gripe, espero que a declaração de pandemia não estrague ainda mais meus planos. Para ir, vou pagar uma multa de uns US$ 500 e na volta terei de ficar sete dias em quarentena compulsória. Eles juram que não vão me descontar das férias. Espero não pegar a gripe suína, nem aqui, nem na China.
12 – Tem tanta coisa pra falar da China, que eu ainda nem comecei, juro. Mas você já cansou de ler, que eu sei.
Há uma semana