sexta-feira, 5 de junho de 2009

Dia da Sombrinha - mas e cadê a água fresca?

Dia 4, mas poderia ser 35. Não que o número tenha qualquer relação ao calor acachapante que elevou os ponteiros dos termômetros para os 35ºC por volta das 13h, quando resolvi visitar a praça. Foi apenas um jeito de os internautas falarem sobre o aniversário, batizando de 35 de maio o que seria 4 de junho. Não teve jeito, os censores perceberam o truque e eis aí outro termo banido da net chinesa. Espertos.

E os 35ºC tiveram seu valor oficial. Era uma boa desculpa para o uso das sombrinhas, acessório na bolsa de 10 entre 10 mulheres chinesas no verão, que fazem de tudo para manter o tom branco da pele, sinal de nobreza. E tendência entre os homens também. A mania é tal que salta aos olhos dos recém chegados, dá um toque colorido às ruas e provoca ainda mais confusão no vai e vém da multidão, num sem fim de esbarra aqui, esbarra ali, dá-me cá minha sombrinha.

Alguém superinteligente da superinteligência do partido percebeu o poder da sombrinha. Botou uma na mão de cada agente à paisana na praça, que fingia estar lá turistando, mesmo que parado como poste horas a fio. E, não, não era o poder da sombrinha enquanto instrumento facilitador do trabalho de espionar sob o sol inclemente e acessório acoplado ao modelito pensando em salvar a pele dos dedos-duro.

Era algo bem menos nobre. Era o poder de a sombrinha se posicionar indolente em frente às câmeras. Qualquer câmera, a qualquer hora, durante os dias 3 e 4, pelo que sei até agora, pelo menos. Com o perdão, patético até não poder mais. O vídeo aí embaixo está em inglês, mas mesmo quem não fala deveria clicar. É hilário se não estivesse sendo encarado a sério. E logo, sendo triste.



A tentativa ingênua revela um desespero para se livrar da sombra dos protestos de há 20 anos. Uma tentativa que nunca é clara, de qualquer ângulo sob o qual analiso. O truque infantil da sombrinha, que remete ao nosso ditado popular sobre tapar o sol com a peneira, se repete na internet. Este vídeo da CNN eu vi aqui sem nenhum subterfúgio. Mas ao bloquear outros tantos sites famosos, como twitter e Hotmail, para citar apenas dois, se instala o burburinho mundo afora, que se espraia desde as profundezas da velha e desatualizada, desantenada e desconectada estrutura burocrata censora. Burros. Nem vou falar que as redes sociais em chinês também vieram abaixo, com data marcada para acabar o período de manutenção forçado. Burros. Tolos. Desesperados. Ingênuos. Donos do mundo e sarcásticos? Continue lendo e chegue lá.

Este jogo de luz e sombras – e sombrinhas patéticas em frente a camêras ávidas para focar apenas em poucos ângulos – é que perpetuou um mito ocidental de luta democrática e um tabu interno no que concerne a demonstrações populares.

Hoje, há dois pontos claros. O país e o partido, que, em todas as instâncias representam uma unidade, sustentam que já têm opinião formada sobre o tema, o incidente foi fruto de uma manifestação orquestrada por dissidentes antigoverno. A afirmação consta da edição de hoje do China Daily, o jornal chinês em língua inglesa (http://www.chinadaily.com.cn/china/2009-06/05/content_8250388.htm). O outro ponto, levantado na quarta-feira pela secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, é de que é necessário implantar na China mais liberdade (http://www.state.gov/secretary/rm/2009a/06/124292.htm) e rever os atos de 1989 como forma de homenagear as vítimas.

Mas que vítimas? Internamente não há reconhecimento de vítimas. No exterior, eles são mártires. Há textos que falam sobre o protesto pacífico pró-democracia esmagado à força e que resultou num derramento de sangue. Ninguém comenta que os estudantes se reuniram por ainda outras causas, algumas desencontradas e que o movimento teve líderes tanto dos tipos radical quanto cabeças-dura, que não conseguiram chegar a consenso e protestar em uníssono. Que a mídia estrangeira já estava quase abandonando o barco devido ao enfraquecimento dos atos, como conta o autor da célebre foto do homenzinho em frente ao tanque, Charlie Cole (http://news.bbc.co.uk/2/hi/asia-pacific/4313282.stm). Aí veio o episódio do tanque e o bando que estava na praça havia dias foi alçado à categoria de jovens destemidos. Não que eles não fossem, mas imagino que você entendeu.

Temos, sim, no ocidente impressões erradas de o que foi 89. Hoje ainda vi um vídeo no site da Globo, cujo link nem vou reproduzir, pois ele vai ser tirado do ar em poucos dias, que fala sobre os 10 anos do protesto. E afirma que o estudantezinho da foto de Cole foi morto pelo tanque. Hoje se sabe que o ícone daqueles dias nunca foi identificado e seu destino é incerto. Preso, pode muito bem ter sido executado, mas certeza ninguém tem. E o texto é tão raivoso quanto equivocado, como se os malvados do partido usassem um povo tolo como marionete. E o povo tolo resolveu agir, mas foi massacrado.

Em muitos termos é assim mesmo. Mas o governo por vezes é tolo também. Que digam as sombrinhas. E esse jogo de sombras que perdura até hoje. Graças a esse enclausuramento e recusa a falar é que se alimentam não apenas especulações, mas clamores por mais clareza. E tem horas que o povo não é tolo, mas tem motivações outras que podem ser resumidas a padrões de vidas melhores, ampliação de liberdades e garantias sociais, conquistas inimaginadas há 20 anos. Este, aliás, é o mantra que o governo repete e que encontra eco em várias camadas da sociedade.

Você pode dizer que não é suficiente, mas quando uma jornalista como a chinesa Lijia Zhang fala, talvez tentamos de prestar atenção. Ela não analisa a sociedade que viveu 89. Ela integra esta sociedade. E ela é crítica ao governo, o que poderia dar a ela um quê de isenção. Pois é ela quem usa uma metáfora um tanto apropriada, segundo meus pontos de vista. Os chineses continuam numa gaiola. O que ocorre agora é que esta é tão grande, tão vasta e tão cheia de atrativos, que muita gente nem nota. O texto, em inglês, foi publicado no New York Times (http://www.nytimes.com/2009/05/31/opinion/31lijia.html?_r=1&ref=opinion).

***

Ontem, para os estrangeiros, a gaiola tava um saco. Para entrar na praça, só com passaporte. Quem tinha visto de jornalista carimbado ainda tinha outra burocracia a cumprir, pedir autorização num escritório tal. E depois enfrentar as sombrinhas.

Rola uma água fresca agora?






Um comentário:

kika disse...

gosto tanto do jeito que tu escreve!

só essa semana fui ler - de verdade - a respeito de tudo que aconteceu e se por um lado eu entendo que haja um conformismo resultado da melhora do padrão de vida, por outro não me desce que aquele mesmo povo que lutou tão bravamente seja hoje tão passivo. e não digo só passivos de não se revoltarem em "grande escala", tenho certeza que tu já reparou na passividade cotidiana dos chineses, ainda que com a internet seja agora possível perceber um novo fôlego contestatório. enfim, sou bem leiga no assunto, mas é essa minha impressão.