quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Vivendo pra cachorro

Quem tem alergia a cachorros, histórias de cachorros, gatinhos e quetais, desista deste email agora. Os que não têm, encarem este texto como a despedida da Bolota, a cachorra que eu achei que não morreria mais. Pois depois de 20 anos, seis meses e dois dias, ela morreu. Na verdade, teve de ser sacrificada, a parte que eu achei triste em toda esta história.

Há dois dias que ela não andava e estava com dor, pois uivava de um jeito meio desesperado, segundo ouvi no skype, enquanto falava com meu pai e minha mãe. Ou seja, sem dúvidas de o que deveria ser feito. Ainda fiquei aqui rezando pra ela dar uma batida nas botas durante a noite, acho meio cruel a história de tomar a decisão de sacrificar, mas não teve jeito. Tadinhos dos meus pais, fiquei com pena de não estar lá em casa.

A Bolota nasceu quando a gente morava em Sanga Funda, no interior de Terra de Areia, se é que vocês podem imaginar que haja interior em Terra de Areia. Filha da Tiquinha, outra vira-latas que estava com a família havia alguns anos (e com Bolota e Tiquinha, vocês podem perceber o quanto a gente era criativo lá em casa, né), ganhou a simpatia da minha mãe porque trazia uns buracos no pescoço, causados por um fungo qualquer que a gente achava, mataria a pobre logo cedo. Esta coisa de fragilidade sempre desperta compaixão, né, não. Algumas visitas ao verterinário depois e algumas aplicações de um fungicida qualquer, eis que Bolota estava salva. E sã. 

A vida no interior foi dura. Quando a gente mora no interior, a gente não faz como as pessoas da cidade. O cachorro dorme na rua, em caixa de papelão. No inverno, os bichos até ganham algum pedaço de lã sobrado dum blusão velho, sem esta de muito luxo. Ração, nem pensar, eles comem o que sobram da casa, ninguém nunca se preocupou lá em casa se este resto era osso de galinha ou peixe com espinha - refeição entre as preferidas da Bolota, aliás.

Desde cedo ela queria ser independente. Tinha a bóia garantida, mas cresceu caçando preás, travando brigas ferrenhas com gambás, animais com cheiros ruins e cheiros bons - e vez que outra exibia cabeças de peixe em frente à casa, pra comprovar que gostava mesmo de pescado. Quer dizer, acho que pescar ela não pescava, mas tinha talento nato pra achar uma que outra carcaça na beira da lagoa.

Cachorro do interior tinha banho de sabão no tanque, jogava bola com os donos e vomitava quando tinha de andar de carro. Mas daí, em meados dos 90 ela teve a chance de ir para a cidade grande, virar cachorra de apartamento, tomar banho em petshop (palavra que ela desconhecia até mudar pra São Leopoldo). Virou até fresca, rosnava pras visitas, encontrou o canto preferido no sofá. Incrível como esta gente que sobe na vida fica esnobe.

Mas quem tem um pé na vida mundana nunca abandona a pilantragem. Foi a família decidir passar as primeiras férias na praia que a danada fugiu, deu pra algum vira-lata e lá estávamos nós, de volta ao apartamento de São Leopoldo, com a cadela dando à luz cinco cachorrinhos, um dos maiores trabalhos de parto a que assisti. Não parava mais de sair cachorro - todos nasceram saudáveis e foram devidamente doados. Bolota já era uma mãe velha, talvez na altura dos 10 anos caninos, faça a conta o montão que dá. Lembro de na época sugerir que se ficasse com um dos filhotes, pra gente manter a linhagem, afinal uma família que começa com Tiquinha é uma família de respeito. A ideia não vingou.

Perto de completar 14 anos, a gente começou a pensar o que fazer quando a Bolota morresse, e a opinião geral era que a melhor saída seria empalhar. Imagina, depois de 14 anos vivendo com o bicho, como dar tchau. Não sei se a Bolota entendeu o destino reservado pra ela, mas começou a se recusar a morrer, mesmo ficando doente vez que outra. Parece que voltava do veterinário cada vez melhor (deve ser uma das únicas cachorras que teve o mesmo veterinário durante 14 anos, ou tou errada). Depois de tantos anos sem morrer, eu já tinha me convencido de que ela já estava empalhada, só que ninguém tinha percebido. Enxergar e ouvir eram tarefas difíceis pra velha, atender ao chamado dos pais e irmãos, então, impossível. 

Aí que a centenária foi pra Guarda com a família na última Páscoa - um mês antes do aniverário de 20 anos caninos. Como não fazia barulho, vivia quietinha, foi preciso algumas horas para que as pessoas na casa se dessem conta de que ela havia sumido. Surda, nem adiantava chamar o nome da cadela. Por volta da 1h, me contaram depois, a família já estava triste, achando que a Bolota tinha se ido. Então o tio Claudinho, amigo da família e conhecedor dos hábitos boêmios dos Camara da Silveira, resolve ir ao centrinho da Guarda e quem ele encontra, molhada depois de banhos no rio e circundando os botecos: a biruta da Bolota, que deve ter saído pra ver se encontrava algum cachorrinho dando sopa. Felizmente, desta última vez ela não voltou prenha, imagina o trabalho. Se bem que até gostaria de ter um cachorrinho da linhagem Tiquinha. 

Como não tem, seguem fotos da vira-lata, uma das quais na versão punk da periferia, na praia do Curumim, em frente à casa do Tio Claudinho, onde ela tomava banho de sol ao lado da garrafa térmica enfeitada com adesivos da Ultramen, a banda preferida da Bolota, vocês bem devem desconfiar. Um dos últimos registros é do inverno gaúcho deste ano, na festa do chapéu, na casa de papai e mamãe, em São Leo, pra onde o Scooby Doo se mudou. Tinham muito em comum os dois. Como vocês podem notar, ela era a estrela do evento.

3 comentários:

Miguel disse...

Bah! Sensacional a biografia e homenagem póstuma à Bolota.
Quando eu partir tu pode fazer a minha também no mesmo estilo. Hehe.

J. Vargas disse...

Muito bom, Jana! Meus pêsames. Também achava que o Sparker não ia, de jeito algum, e o cachorro durou bem uns 18 anos. RIP Bolota. Bebamos em homenagem póstuma.

Ana Manssour disse...

Ri e chorei.
A nossa Patty completou 11 anos e pelo visto também está a caminho de empalhar-se em vida! rs
Tristes aqueles que não entendem o amor e a dor que um bichinho tem a capacidade de nos fazer sentir.
Um abraço meu e uma lambida da Patty, que segue roncando ao meu lado enquanto trabalho no PC.