O 4 de junho é tema sensível na China. Tabu, mito, apagado da história oficial, barrado nos filtros internéticos governamentais. O 4 de junho marca o dia em que o exército chinês tirou da praça estudantes que estavam ali acampados havia cerca de um mês e meio. Eles queriam liberdade, abertura, talvez as diretas, apesar de aqui nunca ninguém ter me dito isso. Que eles quisessem as diretas, digo. Inclusive dizem que eles queriam tanto que acabaram se perdendo, perdendo força, perdendo apoio. Ao final, enfraquecidos, foram calados. Alguns mortos, outros presos, quiçá torturados. Uma data para ser esquecida pelo poder, que não só agiu de modo opressor e violento – e passou a ser cobrado por isso - como percebeu que mobilização popular pode ocorrer mesmo dentro de sociedades pautadas pelo controle central.
Dia desses, o New York Times troxe um artigo (http://www.nytimes.com/glogin?URI=http://www.nytimes.com/2009/05/22/world/asia/22tiananmen.html&OQ=_rQ3D2Q26refQ3Dasia&OP=63639785Q2F-VQ51E-Q5BQ2AGgQ2FQ2AQ2AQ5C_-_Q22Q22Q3B-Q22X-__-VQ2AQ2FQ60Q5B-UgQ7EU-__Q5CQ7EUdUdlQ51dQ238Q5ClQ60), aliás censurado para quem não está registrado, porque mesmo no território livre da internet o que vale é fazer grana, em que questionava a possibilidade de haver um novo 4 de junho na China. A aposta é que não.
Um resumo bem resumido da história mostra que o culpado pelo atual estado de acomodação em que se encontra a sociedade chinesa no que diz respeito a lutas por democracia e liberdade é da sociedade chinesa. Simples assim. Preocupados com carreira, empregos e aquisição de bens, os jovens de agora diferem daqueles que não tinham nada a perder quando foram lutar pelos seus direitos. Eles não tinham direitos, ou tinham poucos. E ansiavam por – mais – alguma coisa. Para quem quiser ser mais otimista, ou quem sabe cínico, pode atribuir apenas aos feitos do governo estas mudanças de humores e espíritos. Há 20 anos as políticas não estavam bem azeitadas, havia mesmo que se mudar. Hoje, para que mudar?
Pergunte a um jovenzinho sobre a Praça e ou ele não saberá, ou fingirá que não sabe ou nem se interessa em saber. Pergunte a um quarentão e se ele quiser falar, talvez diga que saiu da praça por um dos únicos corredores pelos quais ainda se podia passar, ouvindo tiros pelas costas e vendo gente ferida pelo chão. Você, como estas pessoas que trazem estas imagens registradas, pode ter uma ideia do que aconteceu clicando no vídeo abaixo. Por aqui, obviamente, ele está censurado – e vai ao ar vez que outra graças a subterfúgios que ativistas encontram para divulgar por aqui o que os hoje papais e mamães fizeram. Mas divulgar pra quem?
Às vezes tenho a impressão de que há uma gana desesperada para calar algumas vozes. Mas minha dúvida é: se estas falassem em alto e bom tom, teria gente disposta a ouvir? Tem tantas vezes que em nome do – próprio – bem-estar é tão mais fácil fechar os olhos. E segue o baile.
Ontem, no baile enquanto eu comemorava os três anos da escola de samba SambAsia, cujos músicos são meus amigos, vi na plateia o roqueiro Cui Jian, fã assumido do ritmo brasileiro e que se deu mal ao tocar para os estudantes na praça. Isso há 20 anos, quando os acordes do então mocinho se limitavam ao 1,2,3,4 roqueiro. Para falar a verdade, ele voltou com tudo à capital chinesa somente no ano passado, quando fez um show ao lado dos ritmistas chineses da batucada brasileira.
Fiquei viajando nesta conexão maluca, de estar ao lado do roqueiro sambista que se esforçava para garantir um outro requebrado ao som de Timbalada num momento em que o mundo que debate China se volta para os fatos de há 20 anos. E de este moço de boné e bebedor de cerveja sem medo de errar feio no sapateado ser um dos ícones da época. Mas não fui falar com ele, jamais teria coragem – sim, quando estamos acostumados a não ouvir, também temos uma tendência a emudecer – de perguntar o que ele sentiu tocando na praça. Hoje, ao pesquisar sobre o show, descobri que ontem foi o aniversário de 20 anos do concerto. Exatos 20 anos.
Quando Cui Jian subiu ao palco, lá e 1989, os estudantes já estavam acampados há mais de um mês, já houvera greve de fome. O movimento havia ganhado a simpatia de intelectuais país afora, sindicalistas, gente comum, policiais, monges, empresários, que foram até ali doar comida para quem não tinha embarcado na greve. Era velho, jovem, criança, todo o mundo. Muitos deles foram ver o seu Cui Jian. E o Cui Jian viu muito desta gente. Qual a sensação de ter feito parte? E qual o peso de não poder tocar mais no assunto?
De repente, lembrei das Diretas, aquelas que papai e mamãe, pelo menos os meus, tomaram parte no Brasil. Depois lembrei do Fora Collor. E com um quê de decepção, lembrei que o alagoano é senador, indicado para atuar na CPI que agora investiga a Petrobras. Nada mal para quem deixou o governo porque estava envolvido em falcatruas. E lembrei da lambança do Rio Grande do Sul atual e de que há coisa de duas semanas, ou pouco mais ou menos, manifestantes levaram velas à praça pedindo o impeachment da governadora. Nem quero me envergonhar de que havia pouca gente, até porque a gente tem sempre tantas outras coisas a fazer, né, como pensar na carreira, em como ganhar mais dinheiro, em todas estas um milhão de coisas. Muito menos cogito que alguém na sociedade democrática e livre brasileira tenha tachado os manifestantes de desocupados. Nãnã. Ninguém teria coragem.
De tudo isso, concluo, claro, que nada é mais valioso que minha liberdade de falar, escrever e votar. E a sua também deve ser. Pena que muitos de nossos compatriotas não saibam o que fazer com isso. E que a gente nem se importa, para falar a verdade.