quinta-feira, 19 de março de 2009

Misture chá com demônios e garfos no armário

Hoje meu sono me impediu de ir à aula de mandarim, mas não de aprender um pouco mais. Era dia de empregada, então às 8h lá estava ela a apertar a campainha, lá estava eu a abrir a porta. Resolvi voltar para a cama e ela perguntou se eu não tinha aula de chinês. Eu disse que tinha, mas não iria.

- 逃课! - Ela me disse, e estaria escrito assim, caso tivesse legenda. Como não tinha, o som ficou assim: táokè.

Como sabia que 课 (kè) significa aula, não precisei pedir muito dos meus dois neurônios sonolentos para adivinhar que se tratava de matar aula. Pois assim foi. Matei.

Pelas 10h, levantei lépida e faceira e fui fazer meus temas, escrever em chinês à mão, o que é 特别难. Sim, é especialmente difícil e a gente lê "tèbiénàn". Pois tema faz, tema não faz, conversava eu com a Yu, a empregada. Ela também vai à casa de outra amiga minha, a Noha, que fala um mandarim num nível ainda mais baixo que o meu, mas fala.

Quer ver um exemplo de como fala? A pobre da Noha dia desses foi a um restaurante comigo, comida de Yunnan, altamente recomendada, e chegando lá, quis beber um chá. Não precisa ser nenhum gênio, caso more na China há uns poucos meses, pra saber falar:

- 我要茶 (wǒ yào chá) - que quer dizer eu quero chá.

Ela foi até o garçom, pediu e voltou à mesa com cara de quem não tinha se feito entender. Explicou que foi difícil e tudo o mais. Foi impossível, eu diria. Chega o garçom com três garfos (éramos três estrangeiras na mesa). Como assim? Explicação facinha.

A palavra para garfo é chàzǐ (叉子), a de chá é chá (quase igual ao português, mas aqui a gente pronuncia o ch quase como fazemos com o gauchíssimo tchê - daí você entendeu que é só substituir o ê pelo a, né - e grafamos a palavra assim 茶).

O chinês não teve dúvida. Sente a equação

Estrangeiro + cha = garfo

Por que

- Estrangeiro não sabe comer de palitinho

- Estrangeiro não é acostumado a beber chá

Ainda que a Noha, caso quisesse garfo, tivesse esquecido da sílaba zi de chàzǐ, a palavra que designa garfo em mandarim, somente poderia ser esse o objeto que ela queria. E ficamos a falar mal deste condicionamento que sentimos muito por estas bandas, este pensamento tão reto, direto, sem uma nuance diferente que tantos chineses têm.

Em defesa dos donos da casa onde estou, posso dizer que muitas vezes não olhamos pro nosso próprio umbigo. O mandarim é cheio de peculiaridades. Dia desses comentei que os tons eram uma das características mais cruéis da língua. Pois há outras encrencas, uma das quais atende pelo nome e sobrenome de Palavras de Medida. Em geral, antecedem o substantivo e indicam sobre o que estamos falando. Cachorros, automóveis, copos e garrafas têm palavras distintas que combinam com elas.

Caso a Noha tivesse usado uma destas palavras de medida, não haveria confusão entre o objeto de desejo dela. Ela disse apenas

- 我要茶. Eu quero chá, apesar de não ter ficado claro que chá.

Se tivesse dito

- 我要一杯茶 - de cara o garçom teria entendido. Wǒ yào yī bēi chá significa Eu quero um copo ou xícara de chá.

ou

- 我要一壶茶 (Wǒ yào yī hú chá)- ele teria sabido direto que ela queria uma chaleira de chá.

Falamos mal deste pensamento estreito, mas esquecemos de pensar que nos expressamos mal na língua de quem nos acholhe.

Voltemos à Yu, nossa empregada. Ela estava achando engraçado porque da última vez em que foi à casa da Noha, sugeriu que uns cobertores que estavam pela casa fossem guardados no armário, porque o verão está chegando.

- 放柜子里边, ou fang guizi libian.

Pois o guizi do meio, que significa armário, 柜子, não foi compreendido pela Noha. Ou melhor, foi, mas de um jeito totalmente ao contrário. Nós, estrangeiros, além de não sabermos falar os tons, não sabemos perceber as diferenças ao ouvi-los. A Noha xingou a empregada, sem entender do que ela falava, dizendo que guizi era uma palavra muito feia, usada para maldizer os estrangeiros, segundo um colega de trabalho havia explicado. Não estava totalmente errada, pois estava pensando em 鬼子, também guizi, mas cuja pronúncia se dá no terceiro tom, e não no segundo, do caso do armário. O guizi em que a Noha estava pensando tem como tradução demônio.

O 鬼子, guǐzǐ, esteve muito tempo associado à palavra estrangeiro (老外, ou laowai). O demônio estrangeiro, então, era o 鬼子老外. A pobre Yu tentou explicar que guìzǐ não era guǐzǐ, mas se em português nem sempre a gente consegue explicar que focinho de porco não é tomada...

Ainda segundo a Yu, é assim. Hoje, os chineses não tratam mais estrangeiros por demônios, a convivência está muito mais tranquila. Segundo ela, principalmente porque tudo o que um demônio estrangeiro tem, um chinês também pode ter. Com a abertura do mercado e a concorrência, tem gente pobre, gente rica. Então dá pra invejar tranquilamente o vizinho e patrício, o olho gordo não é mais atributo exclusivo internacional (internacional, levando-se como ponto de vista o dos chineses, claro).

Mas, claro, a Yu esclareceu que tem um tipo de estrangeiro que ainda é demônio por aqui. A cada vez que eles falam 鬼子, provavelmente estarão se referindo aos japoneses - os 日本鬼子. Abaixo, reproduções dos uniformes dos soldados e oficiais japoneses na China nos anos 1930.



Tanto ressentimento não é gratuito. Apenas na história recente, entre os anos 1930 e 40, a ocupação japonesa na China deixou marcas, como a tomada de Nanjing, quando teriam morrido 300 mil chineses.

Aqui, reproduções do que seria parte das Forças Armadas chinesas à época.



O governo japonês até hoje não reconhece atrocidades na guerra e por lá, livros didáticos tratam o caso como incidente, mas jamais revelam abusos, como mortes em série em pelotões de fuzilamento, estupros e torturas.

Aliás, já que o clima ficou pesado, há um livro interessante sobre o caso de Nanjing, o Rape of Nanking (capa reproduzida abaixo), ainda sem tradução para o português. A escritora sino-americana, Iris Chang, cometeu suicídio após concluir o trabalho.



Bueno, acho que faltei à aula, mas tive uma manhã de belos aprendizados, não?

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