Se você terminou o domingo bem informado sobre o que acontece pelo mundo ou tratou de fazer isso logo cedo na segunda, sabe que há um tumulto ocorrendo na China, desta vez na Região Autônoma de Xinjiang, berço da minoria étnica uigur, os muçulmanos chineses, para simplificar bem a explicação sobre este povo que tem ascendência quiçá turca, escreve em árabe e fala uigur.
Segundo fontes oficiais, nos protestos ocorridos no distrito de Bazaar, na cidade de Urumqi, neste domingo pelo menos 140 pessoas foram mortas. As notícias separam hans, maioria no país, de uigures, numa distinção cujas raízes econômico políticas se formaram há centenas de anos. Pena que a gente vá saber cada vez menos do que acontece por lá. Sim, a internet que botou lenha na fogueira desta última vez já foi bloqueada por aqueles prados.
Por volta das 17h deste domingo começou a confusão. Manifestantes tomaram as ruas para protestar contra o que consideraram atos racistas ocorridos em Guangdong, a antiga Cantão, no final do mês passado, quando uma briga deixou ao menos dois uigures mortos. De centenas para milhares foi um pulo e teve ônibus queimados, ataques a pessoas inocentes, segundo o governo, e tomada das ruas pela polícia. Depois, toque de recolher e atos violentos se espalhando pela cidade até a madrugada. Mas sobre isso, tudo são rumores, fato é que, para variar, as notícias de lá agora estão bem filtradas. Aqui http://www.thenewdominion.net ainda é possível ver algumas imagens.
Comecemos do início, pelo menos do atual capítulo. No dia 29 de junho, a agência de notícias chinesa, Xinhua, divulgou uma notícia que dava conta da prisão de um homem da etnia han que havia espalhado um boato falso via internet sobre um suposto estupro na fábrica de brinquedos Xuri, na cidade de Shaoguan. Os autores da atrocidade seriam trabalhadores migrantes uigures. Pronto, o dormitório onde ficam os empregados desta minoria foi atacado e houve mortes. A motivação seria simples. A fábrica tem 10 mil empregados, 800 dos quais uigures contratados entre maio e junho. Os han não gostaram de ver os postos de trabalho perdidos e resolveram agir.
A interpretação atual do governo chinês? Na verdade, tudo foi orquestrado e premeditado, desde o boato falso, para que os uigures encontrassem uma desculpa para atacar os han. Esta é a terceira versão sobre o mesmo tema. Antes, foi o simples fato de que os uigures são malvados. Depois, que os uigures eram vítimas de um han racista. Agora, que eles são malvados e espertos, sabem usar artimanhas e até a internet.
Isso lembra algo? Para mim, lembra as teorias de que o 11 de setembro foi maquinação do próprio governo norte-americano e lembra, ainda, uma repetição sem fim da expressão ataques premeditados, preferida da mídia chinesa para se referir a qualquer coisa que saia do eixo de controle do partido. Quando surgiu pela primeira vez? No famoso editorial de 26 de abril de 1989, quando o jornal voz do partido publicou falas do então presidente Deng Xiaoping, que afirmava que os protestos na praça naqueles idos eram premeditados e organizados devido a motivações antipartido e antisocialistas. Claro, agora os protestos de domingo já têm autor, a organização separatista World Uyghur Congress, liderada pela dissidente Rebiya Kadeer, que hoje mora nos Estados Unidos.
Acordar com um barulho destes na segunda-feira me faz pensar em outras questões sobre o mundo injusto e malvado. A versão oficial dá conta de que Xinjiang foi libertada pacificamente há 60 anos, coincidentemente o mesmo tanto de tempo da fundação da República Popular da China, aniversário que pode não ser muito bem-vindo, pois os tais libertados não estão muito convencidos disso. O Departamento de Estado norte-americano, por exemplo, também não está e no início deste ano divulgou um comunicado afirmando que o governo chinês estaria implantando severas repressões culturais e religiosas na região. Coincidência ou não, o centro de Kashgar, um dos mais preservados arquitetonicamente no que diz respeito aos traços uigures, foi posto abaixo porque os prédios centenários estavam para desabar. Restauração aqui ganha traços de instauração de tudo o que for han, numa preservação de história milenar sem traços que distoem dos interesses centrais.
O pulso forte em relação à região, que ocupa um sexto do território chinês – tipo assim, acho que quase a Europa inteira – tem nome: petróleo. O recurso é abundante por lá, onde também se produzem algodão e frutas deliciosas.
Pouca gente fala sobre Xinjiang, que faz fronteiras com países da Ásia Central, Mongólia, Rússia, Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão, Afeganistão, além da Caxemira, aquela partezinha do globo espinhosa e causa das tensões incessantes entre Índia e Paquistão. É mole? Não, não é. Mas por que ninguém dá bola, como dá bola pro Tibete (até rimou)?
Outra vez, pensando aqui com meus botões, a problemática dos uigures não atrai olhares mundiais porque eles não têm o apelo Dalai e budista. Alguém já viu outrém levantar bandeira pró muçulmano sem ser taxado de terrorista? A antipatia global ante os seguidores do Corão é tanta que os deixem tentar sozinhos seus sonhos de independência. Buda era um cara bem mais legal e contido, apesar de gordo daquele jeito.
Fato é que nesta papagaiada toda, a única coisa que fica como lição é que as motivações são econômicas, os extremismos são religiosos e a primeira medida para que se possa apertar na repressão é calar a mídia e os ativistas. E a violência aparece como única saída numa espiral de caos e sentimento de injustiça e vitimização.
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Para a primeira notícia sobre o suposto estupro em Guangdong, em inglês:
http://www.shanghaidaily.com/sp/article/2009/200906/20090629/article_405754.htm
Para um artigo interessante do Wall Street Journal sobre os protestos deste domingo
http://online.wsj.com/article/SB124684826272698823.html
Para a versão oficial
http://news.xinhuanet.com/english/2009-07/06/content_11658819.htm
Para atualizações interessantes via twitter
http://twitter.com/mranti
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